"Índio não é coitadinho", diz Davi Kopenawa Yanomami
Xamã e líder político dos indígenas participou de evento na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) na terça-feira (8)
Por Aline Custódio - Gauchazh
Uma das maiores lideranças indígenas no Brasil, Davi Kopenawa Yanomami, 66 anos, afirma que lutará pela proteção do seu povo, da Terra Indígena Yanomami (uma área de 96 mil quilômetros quadrados na Amazônia), dos demais povos originários e da Floresta Amazônica até o seu último dia de vida. É a sua missão, garante o xamã (uma autoridade espiritual, cuja força vem da natureza e do universo sobrenatural).
Nascido em terras ribeirinhas ao Rio Toototobi, a poucos quilômetros da fronteira entre o Estado de Roraima, no Brasil, e a Venezuela, Kopenawa é uma voz ativa na luta pela defesa da natureza. E vem percorrendo o mundo para denunciar o avanço ilegal do garimpo e do desmatamento. Presidente da Hutukara Associação Yanomami, entidade indígena de ajuda mútua e etnodesenvolvimento, também é roteirista, autor, produtor cultural e palestrante.
Ao longo dos anos, os prêmios e distinções que tem recebido traduzem o reconhecimento: United Nations Global 500 Award, Ordem do Rio Branco, Ordem do Mérito Cultural do Brasil, Menção Honrosa pelo júri do Prêmio Bartolomé de las Casas da Espanha, convite para discursar no Parlamento do Reino Unido, personalidade convidada a assinar o Harvard Guest Book e o Right Livelihood Award. O mais recente foi recebido neste ano, o título doutor honoris causa pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Quando não está na cidade a trabalho, passa os dias com a família na aldeia Watoriki, no Amazonas. Nesta semana, ele esteve na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na região central do Estado, para palestrar no evento "Brasil: Terra Indígena - 522 Anos de Resistência", e aproveitou para reunir-se com estudantes universitários indígenas, residentes nas dependências da instituição. Foi entre um compromisso e outro que ele conversou com as reportagens de GZH e dos veículos de mídia da UFSM (revista Arco, UNIFM e TV Campus).
Muitas pessoas não compreendem a importância de proteger a floresta e os povos originários. Como o senhor avalia esta situação?
As autoridades falham muito. Quem chegou atrasado são os brancos. Por isso, querem pegar tudo e onde está o povo indígena. O governo está interessado no dinheiro, em tirar madeira, colocar fogo nas florestas, pessoas garimpando e jogando veneno nos rios. Nós, a geração do nosso povo e vocês (jornalistas) estamos sempre falando para as pessoas (alertando sobre a falta de proteção ao meio ambiente). E a autoridade não fala nada de quem destrói a terra. Fica longe, não está pensando no futuro para outras gerações que vão precisar da floresta viva e da terra protegida. O papel da autoridade é só explorar, negociar e desfazer o Brasil. Quero falar sobre a beleza da nossa terra mãe, que Omama (a criadora da floresta, dos seres humanos e dos animais) deixou para nós. Por isso, estou visitando, conhecendo e conversando com os não indígenas. Minha visita é importante para falar com o povo da cidade e eles me ouvirem. Muita gente fala que está protegendo. A palavra é bonita, mas não estão protegendo de verdade. Quem protege de verdade são os povos indígenas brasileiros.
Houve uma conferência da qual o senhor participou de forma online em que falou "Nós, Yanomami, não somos coitadinhos, vocês é que estão doentes". Gostaria que o senhor falasse mais sobre esta mensagem.
Nós, povos originários, não somos coitadinhos. Índio não é coitadinho. Yanomami sabe pensar, sabe falar, sabe explicar, sabe fazer grande festa, sabe pensar o mundo inteiro, sabe pensar a lua, o sol e sabe pensar claridade e escuridão e onde estamos vivendo. Índio não é coitadinho. Esta plantinha (aponta para um cactos num vaso sobre a mesa) é coitadinha. Não tem pai, não tem pensamento e não tem energia. Nós, Yanomami, não somos coitados. A natureza está nos cuidando. Nós estamos conectados com a floresta, com a terra e com a chuva. Por isso, falei que índio não é coitado. Quem é coitadinho é o povo da cidade. Está sofrendo, com casa pequena, não tem lugar para caçar, para pescar e trabalhar. Só tem um homem que cuida de tudo e não está repartindo para o povo da cidade. Falo isso porque eu vi na cidade de São Paulo. Tem muita gente dormindo no chão, com fome, com doenças, sem apoio, e as crianças comendo lixo. Não tem lugar para mijar, para cagar, para tomar água. Nós somos livres, os povos indígenas são livres. Temos espaço para andar, para buscar o nosso alimento, temos xapiri (guardiões invisíveis das florestas, espíritos nos quais os ancestrais animais dos povos Yanomami se transformaram) para nos cuidar quando o espírito mal pega a nossa sombra e deixa doente. Temos xapiri para termos saúde. Não usamos remédio. Usamos a força da natureza para cuidar do povo e do planeta Terra. O pensamento da sociedade não indígena está preocupado. Vocês estão doentes na cabeça preocupante (saúde mental). Tem muita coisa rodando, tem pouco dinheiro para pagar a casa, a luz, a água, a saúde. Vocês estão preocupados e doentes. Não conseguindo seguir os seus caminhos. Vocês veem notícias que tem gente morrendo ou roubando. Daí, a doença fica na cabeça. Pensamento doente é você não conseguir pensar direito, escutar, sonhar e olhar longe. Pessoa que está triste e doente toma muita cachaça e muita droga. Homem fica doente de roubar, de não escutar e de falar mal da gente.
O senhor fala que os povos indígenas têm liberdade, mas como vocês têm enfrentado a questão do garimpo, que acaba reduzindo esta liberdade de vocês na floresta? Como está a situação? Na década de 1970, houve aquela primeira invasão do garimpo, na qual o senhor foi uma voz contrária. Depois, a terra indígena foi reconhecida. O reconhecimento está completando 30 anos em 2022 e o garimpo voltou.
A história do garimpo é muito antiga. Os americanos que começaram a garimpar nos rios e igarapés à procura de pedras preciosas. Para eles, vale. Para nós, não vale. As pedras preciosas, ouro e diamante, areia e terra estão unidos para equilibrar o nosso planeta Terra. Os garimpeiros chegaram e foram entrando (na Amazônia). Mas não foram só eles. Os políticos entraram para colonizar a terra. Os garimpeiros que estão aí não têm terra para mexer com garimpo. Como não têm apoio do governo para trabalhar num lugar onde não tem indígena, eles podem invadir as terras dos povos originários. São 40 mil garimpeiros que entraram sem consulta dos povos originários, sem consultar lideranças que falam português, como Raoni, Ailton Krenak, Marcos Terena e eu. Nós já estávamos lutando contra outros invasores chamados de fazendeiros, que estão desmatando. Eles entraram pela Perimetral Norte (estrada aberta no meio da mata entre 1973 e 1976), chegaram na terra yanomami, mataram o meu povo, mataram meu pai e minha mãe e, por isso, eu entrei na briga. Eles abriram pista grande para levar mercadoria, gasolina e máquinas, fizeram acampamentos e começaram a matar nossos parentes. Eles tentaram matar as lideranças. A partir de 2016, eles entraram de novo (na Terra Indígena Yanomami). Hoje está pior: aumentou o número de garimpeiros. São mais de 70 mil garimpeiros atuando hoje nas nossas terras (de forma ilegal). Também conto como garimpeiros a pessoa que compra o ouro, o dono do avião, o dono da loja e o estrangeiro que está comprando e apoiando o garimpo.
E o que é resistência para o povo yanomami?
É a terra que não vai morrer. Nós morreremos. A terra não tem fim. Sofre, mas não morre. As árvores morrem derrubadas, queimadas e raspadas. A terra não. Ela resiste. Ela tem a vida e por isso lutamos junto com a terra e a floresta.
Como o senhor está avaliando a discussão, no Supremo Tribunal Federal (STF), do Marco Temporal, que propõe que sejam reconhecidos aos povos indígenas somente as terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal, a partir de 5 de outubro de 1988?
O Marco Temporal já acompanhei e fiquei assustado. Ele estava engavetado. Ele significa uma cobra grande para mim, que aparece para nos atacar e assustar os povos originários. O Marco Temporal quer tomar as nossas terras de novo, querendo diminuir as terras demarcadas e as não demarcadas. Quer roubar novamente, quer colocar mineração dentro das terras indígenas.
O senhor falou que é muito bom ter um Ministério dos Povos Originários. Mas qual seria a primeira ação que este ministério pode ter se for criado pelo presidente que assumirá o cargo em 2023?
Ainda é um plano, um pensamento no papel. Nós nunca pensamos sobre isso. Quem falou isso é Lula. Ele está sonhando e pensando. Acho uma boa ideia. É uma oportunidade ter um ministério dos povos originários em Brasília para começar a conversar entre deputados, entre outros ministérios não-indígenas e outras autoridades. Hoje, nossos filhos e filhas jovens sabem falar português, entendem sobre políticas públicas. Eu colocaria uma mulher jovem (como representante), que já aprendeu a falar as línguas, sabem escrever, mexer em computador, sabe mandar mensagens para outros lugares longes, para nos defender. É a estaca para iniciar uma casa. É o começo de uma árvore para nascer as nossas frutas e crescer nossas raízes. Uma oportunidade muito importante para o nosso povo e para vocês também.
Está acontecendo no Egito a COP27, a conferência mundial do clima, organizada pela ONU. O que o senhor falaria para as lideranças mundiais que estão reunidas discutindo o tema?
Não tenho vontade de ir lá. O problema é deles. Do jeito que eles estragaram, eles que consigam tapar os buracos estragados. Esta mudança climática que eles falam significa a vingança da natureza e do nosso planeta. Estão deixando adoecer os nossos rios, e água é vida. Nossa mãe Terra fica revoltada com o estrago do capitalismo, que sempre usa, explora, derruba e queima. Até a chuva está suja, há lugares sem sol, outros muito quentes e onde a terra está rachada. Esta mudança climática não vai ser sarada. Vai crescer, vai acontecer, vão chegar doenças, como chegou o coronavírus. Sem índio, sem xapiri, vai acontecer. O meu sonho, que eu escutei com grande pajé, que já faleceu, no território yanomami, ele passou para mim que eu escrevesse e passasse aos não indígenas, que estão usando muitas máquinas pesadas, cavando buracos, arrancando as pedras e criando fábricas muito grandes. E esta fumaça venenosa vai sair no ar, vai chegar lá em cima e juntar com xawara (epidemias associadas às mercadorias e à ganância dos não indígenas e seus chefes).
O senhor já sofreu ameaças de morte ao longo da sua luta para salvar a floresta e o planeta. O que faz o senhor não se calar e continuar trabalhando?
Eu já fui ameaçado. Sofri ameaça por fazendeiros, garimpeiros e outras pessoas da cidade porque eu estou atrapalhando o trabalho deles. Porque estou divulgando e denunciando (as ilegalidades). É um direito meu e do meu povo. O pessoal perde os motores deles e a polícia queima as máquinas deles. Então, eles ficam revoltados comigo. Eles me procuram na cidade para acabar com a minha vida. Eu me protejo. Eu me cuido. Fico na cidade só para trabalhar e para lutar. Não é para ganhar dinheiro. É trabalhar para defender o direito do meu povo, para defender a nossa terra, a nossa família e a floresta. E agora Bolsonaro perdeu e eles ficaram mais bravos. Eles estão p* comigo, com meu filho e as outras lideranças que estão lutando.
Mas o senhor não vai parar?
Não vou parar. Não vou. Porque eu não estou roubando, não estou roubando dinheiro ou a casa que eles têm, não estou roubando as terras deles. Estou fazendo um bom trabalho para eu viver bem e para os povos indígenas viverem bem. Este é o meu papel de liderança. Minha missão vai continuar. A luta não vai parar. A minha luta vai até o fim.
Como o senhor vê a chegada do indígena à universidade? O que o senhor tem a dizer para esses universitários?
Ao jovem indígena que está estudando na universidade, espero que escolham o caminho da saúde e do bem viver. Têm que aprender a palavra e fazer na prática. Eles têm que pensar no seu povo, na sua terra, onde nasceram. Não podem esquecer. Precisam estar ao lado do povo e da floresta para não deixar destruir e estragar a Floresta Amazônica.
E se você tivesse que deixar uma lição aos não indígenas, qual seria?
Nós estamos iniciando (uma conversa). O livro A Queda do Céu, que está entrando nas universidades, já é um ensinamento para vocês. Para abrir, ler e olhar à frente para abrir os olhos. Nossos ensinamentos podem ser pelo livro e pela nossa fala. Sem nós (os indígenas), outros povos vão chegar na floresta e derrubar tudo. Vão colocar o que quiserem no lugar das árvores e da terra.
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