Crise Yanomami: dois meses depois, presença de garimpeiros impede chegada de serviços de saúde
Crise Yanomami: dois meses depois, presença de garimpeiros impede chegada de serviços de saúde a comunidades, diz Davi Kopenawa
'Garimpeiros estão trabalhando escondidos', disse ao g1 principal liderança do povo Yanomami.
Por G1 São Paulo
Dois meses depois de o governo federal ter declarado emergência em saúde pública no território Yanomami, garimpeiros ainda atuam na terra indígena --o que impede a chegada dos serviços de saúde para uma população que sofre com o aumento de doenças como a malária. O diagnóstico é de Davi Kopenawa, xamã e principal liderança do povo Yanomami.
“Febre, dor de cabeça, dor de estômago. Ali não tem remédio para tomar e ajudar a ficar bom. Falta muito. E a equipe de saúde não conseguiu chegar até onde as comunidades estão precisando de saúde", disse, em entrevista ao g1.
Kopenawa diz que "os garimpeiros estão trabalhando escondidos": "Metade, mais ou menos, saiu, mas o resto se escondeu". Havia 20 mil garimpeiros no território Yanomami em janeiro, segundo estimativa da Hutukara Associação Yanomami (HAY).
O líder dos Yanomami afirma que não pode encontrar parentes doentes na comunidade de Waikás, por exemplo, em razão da presença de garimpeiros. “Os garimpeiros querem acabar com a minha vida, porque eu luto contra eles. Então, eu não consigo chegar até lá."
Com o garimpo, as equipes de saúde não conseguem se deslocar às comunidades próximas aos pontos de extração de ouro. "Pessoal da saúde tem medo de ficar junto com os garimpeiros, por isso que os meus parentes adoeceram na beira do rio Uraricoera. Os yanomami que moram perto de garimpo continuam doentes", diz o líder indígena.
A presença de garimpeiros se dá na região do Xitei, na região do Homoxi e na cabeceira do rio Orinoco, diz Kopenawa.
A descrição contrasta com avaliação do ministro Flávio Dino (Justiça), que, em entrevista na segunda-feira (20), disse que os garimpeiros constituem "uma presença muito pequena, tendente a zero". Ao g1, o Ministério da Justiça informou que os números deveriam ser verificados com a Polícia Federal -- que não respondeu até a publicação deste texto.
Depois da emergência sanitária, seguidas operações do governo federal no território Yanomami atuam para retirada da atividade garimpeira. Mas o relato do principal líder dos indígenas expõe o desafio do governo federal de remover cerca de 20 mil garimpeiros de uma área de 10 milhões de hectares, com 376 comunidades, entre os estados de Roraima e do Amazonas, perto da fronteira com a Venezuela. A operação de retirada dos invasores no território indígena irá apenas até abril, afirmou Dino também na segunda-feira.
Além da presença do garimpo, há ainda duas dificuldades principais para que o socorro humanitário e o atendimento de saúde atinjam as comunidades:
• logística difícil, que exige transporte aéreo e fluvial;
• falta de infraestrutura nos 37 polos base (sedes para a organização e realização da atenção à saúde dentro dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os DSEI);
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, reconhece que a assistência de saúde e a ajuda humanitária não alcançaram até o momento todas as comunidades indígenas:
“Ainda continuam morrendo crianças yanomami dentro do território em áreas que a gente ainda não conseguiu chegar”, afirmou Sônia Guajajara no programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda.
Relação entre garimpo e malária
Os buracos que os garimpeiros abrem nos rios para a extração do ouro se tornam focos de água parada, ideais para a proliferação dos mosquitos que transmitem os parasitas causadores da malária.
Em 2022, quase 15 mil casos foram notificados, segundo dados do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena. Isso num universo de cerca de 30 mil indígenas.
Neste ano, já são mais de 3.400 casos, conforme o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Malária. Mas, na realidade, os números devem ser ainda maiores dada a subnotificação.
Mais preocupante ainda é o fato de muitos dos casos serem da malária transmitida pelo parasita falciparum. Mais graves que aqueles causados pela infecção da espécie vivax, esses casos, considerados emergências médicas, podem evoluir para a chamada malária cerebral, responsável por cerca de 80% dos casos letais da doença, segundo a Fiocruz.
Em todos os casos, o ideal é que o tratamento com antimalárico seja iniciado o mais rápido possível após o início dos sintomas para eliminar o parasita da corrente sanguínea do paciente e evitar complicações.
"Malária faz yanomami sofrer sem remédio. Se o tratamento é rápido, em um, dois ou três dias, é melhor”, diz Davi Kopenawa. “Mas quem não toma remédio fica piorando, piorando, até morrer. É assim que a doença de malária mata nossas crianças, meus parentes. Isso é muito triste para mim”.
"A população fica muito fraca por conta da malária. Doente ninguém consegue fazer roça, por isso aconteceu muita desnutrição também”, afirma Julio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye'kwana, em entrevista ao g1.
"Já perdemos muitas crianças, já perdemos muitas pessoas. A gente não quer perder mais", disse Julio.
Segundo o Centro de Operações de Emergência em Saúde (COE) Yanomami, do Ministério da Saúde, foram enviadas 248 mil unidades de medicamentos para malária ao DSEI Yanomami. Para o último final de semana estava prevista a entrada de dez profissionais de saúde nos polo base Surucuru, Auaris e Missão Catrimani para combater a malária especificamente.
Pessoas não-tratadas podem se tornar fonte de infecção para mosquitos que, por sua vez, vão infectar outras pessoas. Há ainda casos de pessoas assintomáticas que podem estar infectadas. Por isso, pode ser necessária a busca ativa dos casos. Na Casai (Casa de Saúde Indígena), em Boa Vista, por exemplo, tinham sido realizados 362 testes até o dia 7 de março. Destes, 18 deram positivo para malária – 17 eram assintomáticos, segundo o COE.
Dificuldade de acesso
Em Auaris, no extremo noroeste da Terra Indígena, lideranças indígenas também reportam um aumento expressivo nos casos de malária.
Lá, não é a presença garimpeira que impede o atendimento e sim os problemas de locomoção das equipes de saúde.
“Não é todo mundo que é acostumado a andar no mato. Eles não conseguem chegar nas comunidades mais distantes, não tem como pousar helicópteros, algumas comunidades não tem clareira perto para pousar, nem pista de pouso, por isso que não acontece esse atendimento lá”, explica Julio Yek’wana.
Enfraquecidos pela doença, também não são todos os indígenas que conseguem caminhar até o polo base de Auaris para buscar ajuda.
“São 3.000 indígenas e só tinha quatro profissionais de saúde para atender essa população. E são mais de 40 casos de malária por dia naquela região”, diz Julio.
Falta de estrutura
Em muitas regiões da Terra Indígena Yanomami, a estrutura dos polo base se resume a barracões de madeira. Até recentemente, era este o caso do polo de Surucucu, ponto de referência para onde são transferidas pessoas doentes de outras regiões -- os casos mais graves são, depois, levados até a Casai, em Boa Vista.
"Era um dos poucos polo base que tinha médico, enfermeiro, auxiliares técnicos. Em termos de equipe é o mais completo, mas a estrutura é muito pequena e básica", contou o enfermeiro sergipano Marcos Aurélio Fonseca, que atuou no polo base de Surucucu nas primeiras semanas de fevereiro como voluntário da Força Nacional do SUS.
Ricardo Affonso Pereira, médico e presidente da ONG Expedicionários da Saúde, também esteve em Surucucu pela última vez em fevereiro e descreve como “lamentável” o estado do polo base. “Agora estamos melhorando, colocamos banheiros e cozinha, reformamos a enfermaria, levamos mais macas, arrumamos a sala de procedimento”, conta ele.
A ONG Expedicionários da Saúde está trabalhando em conjunto com o COE para a instalação de um hospital em Surucucu. A previsão do COE é que o trabalho seja concluído em 24 de abril.
A instalação do hospital dentro da Terra Indígena possibilitará maior agilidade nos atendimentos e menos necessidade de remoção -- por transporte aéreo -- até Boa Vista, uma demanda das lideranças indígenas.
“Eles [a Força Nacional do SUS] entraram [na Terra Indígena] sem nada: sem material, sem remédio. Estão removendo pacientes para a cidade. Aqui na Casai está ficando cada vez mais lotado. Nossa intenção não era essa, era entrar e fazer o tratamento lá mesmo. Isso que também me preocupa muito”, diz Julio Ye’kwana.
Segundo os últimos dados disponíveis pelo COE, havia mais de 700 pessoas na Casai Yanomami entre pacientes e acompanhantes. Depois de recebida a alta, eles ainda precisam retornar às suas comunidades, o que exige mais logística de transporte aéreo.
Terra arrasada
A estrutura da Casai também carecia de melhorias. Um relatório do Ministério de Saúde após a missão exploratória realizada pela pasta em janeiro apontava que nenhum alojamento do espaço possuía mosquiteiro para a proteção contra a malária.
“Unidade muito desabastecida, faltando medicações básicas como: albendazol, dipirona, antibióticos e fármacos para tratamento da malária”, afirma um trecho do documento.
No ano passado, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal realizaram uma operação contra fraude na compra de remédios destinados ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), que inclui a Casai. Segundo as investigações, o esquema criminoso deixou pelo menos 10 mil crianças indígenas sem medicamentos.
Até bebedouros e ventiladores tiveram que ser adquiridos pelo COE e instalados no espaço. Banheiros existentes estão sendo reformados e novos já começaram a ser construídos.
O estado da Casai exemplifica o descaso com que a saúde indígena foi tratada durante o governo de Jair Bolsonaro. Ao longo dos últimos quatro anos, foram enviados mais de 60 pedidos oficiais de auxílio ao governo Bolsonaro e todos foram ignorados, segundo o líder indígena Junior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami.
O governo Lula declarou emergência em saúde na Terra Indígena no dia 20 de janeiro e atua para frear a crise com o envio de profissionais, recursos, medicamentos e forças de segurança para a retirada dos garimpeiros do território.
O tamanho e a complexidade da tarefa, no entanto, exigem a atuação coordenada de vários ministérios -- o que não parece estar acontecendo de forma eficaz.
No Roda Viva, a ministra Sonia Guajajara foi questionada sobre a recusa do Ministério da Defesa para corrigir 46 pistas de pouso, conforme solicitado pela presidência da Funai, e a resposta das Forças Armadas na crise. De acordo com a ministra, o Ministério dos Povos Indígenas, em conjunto com outras pautas, está terminando um plano para a manutenção das ações no território.
"Se a gente começou, a gente precisa concluir essa desintrusão", afirmou Guajajara.
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