População é convidada a revalidar Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro como patrimônio cultural
Publicado por Sociedade Ambiental | Por Juliana Radler*
Parecer do Iphan, órgão responsável pelo registro, defende a valorização da agricultura milenar dos indígenas do noroeste amazônico; confira como participar
Crédito: Juliana Radler/ Isa
Até 4 de dezembro deste ano, a população pode se pronunciar sobre a revalidação do Sistema Agrícola Tradicional (SAT) do Rio Negro como patrimônio cultural brasileiro por meio de formulário digital, email ou via correspondência. Confira os detalhes ao final do texto.
É possível consultar a íntegra do parecer de reavaliação elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em parceria com organizações diretamente envolvidas, como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o Instituto Socioambiental (ISA), detentores e pesquisadores do PACTA (Populações Tradicionais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais na Amazônia), com contribuição das equipes técnicas do Iphan-AM, do Conselho da Roça e do Comitê Gestor de Salvaguarda.
“Celebro a revalidação do Sistema Agrícola do Rio Negro como patrimônio cultural do Brasil pelo seu caráter inovador e pelo seu potencial de movimentar uma economia que cuida de pessoas e da conservação ambiental”, pontua Carla Dias, antropóloga do Programa Rio Negro, do ISA.
Segundo ela, reafirmar o conjunto de práticas e saberes é valioso para o país, “pois trata-se de um passo para o reconhecimento de um serviço socioambiental prestado pelos 22 povos indígenas rionegrinos que fazem o manejo da biodiversidade e de parte de nossa garantia por alimentos no futuro”.
“Faz todo sentido, e é premente, salvaguardar os sistemas agrícolas neste momento de pandemia e de emergência climática”, conclui a pesquisadora.
Cultura e diversidade
O SAT do Rio Negro é entendido como um conjunto estruturado, formado por elementos interdependentes: as plantas cultivadas, os espaços, as relações sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. A inscrição no Livro de Registro dos Saberes foi realizada em 2010. No site do Iphan é possível acessar a documentação relacionada ao processo de salvaguarda do SAT Rio Negro.
A diversidade genética das espécies é uma forte característica do sistema, cuja riqueza está no amplo conhecimento indígena do processo de domesticação das plantas. No SAT Rio Negro, por exemplo, registra-se o manejo de cerca de 100 espécies de mandioca e 300 espécies de outros tipos de plantas, configurando-se um conhecimento importante na constituição e na conservação de um amplo patrimônio biológico e cultural na Amazônia brasileira.
O parecer de 2021, realizado dez anos após o reconhecimento pelo Iphan, apresenta informações atualizadas sobre o bem cultural, indicando a permanência de seus principais atributos e a incorporação de novos elementos. Informa também sobre recentes mudanças, como na dinâmica dos bens imateriais, com a substituição de alguns objetos artesanais por artefatos industrializados utilizados para o plantio, processamento e transporte da mandioca.
Consta no parecer, ainda, a necessidade contínua de produção de documentação sobre o SAT do Rio Negro, com o intuito de aperfeiçoar o conhecimento das semelhanças e diferenças da produção alimentar nas 22 etnias indígenas detentoras deste bem cultural. A possibilidade de se incorporar outros grupos indígenas que desenvolvam modelos agrícolas sobre os mesmos princípios práticos e conceituais também é apontada no documento.
Revalidação a cada 10 anos
A revalidação de um bem cultural registrado pelo Iphan ocorre a cada dez anos, de acordo com o Decreto nº 3.551/2000, que institui esse instrumento de proteção. Ao final dos 30 dias, as eventuais manifestações sobre o parecer de revalidação serão integradas ao processo, a fim de subsidiar a avaliação dos pareceres pela Câmara Setorial de Patrimônio Imaterial.
Posteriormente, o processo será encaminhado ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que decidirá sobre a Revalidação do Título de Patrimônio Cultural do Brasil.
A patrimonialização do SAT foi solicitada pela Acimrn (Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro), filiada à Foirn, junto com pesquisadores do grupo PACTA, numa colaboração Brasil-França, que contou com a parceria do ISA. Entre as pesquisadoras envolvidas estavam: Laure Emperaire, Manuela Carneiro da Cunha, Lúcia van Velthen, Esther Katz, Patrícia Bustamante e Carla Dias.
“Todas as plantas foram feitas para circular entre a humanidade”
Os povos indígenas que habitam a região noroeste do Amazonas — ao longo da calha do Rio Negro e das bacias hidrográficas tributárias — detêm o conhecimento sobre o manejo florestal e os locais apropriados para cultivar, coletar, pescar e caçar, formando um conjunto de saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano.
O SAT acontece em um contexto multiétnico e multi linguístico, no qual os grupos indígenas compartilham formas de transmissão e circulação de saberes, práticas, serviços ambientais e produtos. É possível identificá-lo, uma vez que ele é elaborado, constantemente, pelas pessoas que o vivenciam.
A circulação de conhecimento relacionado ao SAT pode ser exemplificada no depoimento dado pelas indígenas do povo Baré, Sandra Gomes e Elizângela da Silva, aos técnicos do Iphan durante o processo do parecer de revalidação:
“É um único sistema, porque o conhecimento é compartilhado, ele circula... as plantas e as pessoas circulam. Minha mãe me ensinou a fazer farinha de um jeito... eu aprendi com ela a maneira de raspar, de tirar goma, de cozinhar o tucupi. Quando eu casei, eu já aprendi também o jeito da minha sogra e ela também aprendeu com meu jeito. Por isso circula, por isso o sistema existe...porque a gente compartilha. No casamento, na família, com as vizinhas que a gente gosta. É um mesmo sistema, é o SAT-RN. É um sistema que nunca a gente vai deixar, porque é de todas as mulheres do Rio Negro. E, nesse SAT-RN, as pessoas fazem também do seu jeito específico.... As mulheres Baniwa, por exemplo, são boas para fazer beiju grande. Todas nós fazemos beiju, mas as Baniwa são boas para fazer beiju grande. Os Baniwa, por exemplo, não tem muito costume de comer curadá, mas quando um Baniwa, por exemplo, se casa com uma mulher Baré, ela faz curadá e os filhos deles já crescem comendo curadá. Ou seja, mesmo que não fosse específico dos Baniwa aquele alimento, através do casamento ele passa a comer... e assim vai. O SAT-RN é um sistema que tem troca, em que as pessoas vão incorporando conhecimento, práticas, alimentos.”
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