‘Pseudo Indígenas’ é premiada no festival de fotografia Les Rencontres d’Arles
Publicado em Amazônia Real
Vencedoras de prêmio durante o festival Les Recontres d’Arles, na França, as fotografias da série ‘Pseudo Indígenas’, de Ana Mendes e curadoria de Marcela Bonfim, serão expostas em novembro em Paris. A imagem acima mostra menina Akroá Gamella na retomada Cajueiro Piraí, no Maranhão, 2018, evento ocorrido na Galerie Huit- Arles de Júlia de Bierre (Foto da série ‘Pseudo Indígenas’, de Ana Mendes)
São Paulo (SP) – A Amazônia deixou sua marca na edição 2021 do festival de fotografia Les Rencontres d’Arles, um dos mais importantes do mundo, que acontece no verão europeu anualmente, desde 1970, na pequena cidade de Arles, no sul da França. Representante da região Norte do Brasil, a série fotográfica Pseudo Indígenas, assinada por Ana Mendes e com curadoria de Marcela Bonfim, sagrou-se vencedora do programa Um Olhar sobre o Brasil, dedicado à projeção da fotografia documental brasileira na França, sob o tema Rituais Fotográficos/Rituais de Resistência.
O prêmio para Pseudo Indígenas será a participação, em novembro, na feira PhotoDoc que acontece na mesma época do Paris Photo, em Paris, ao lado das séries classificadas em segundo e terceiro lugar (respectivamente, O Grande Vizinho, de Rodrigo Zeferino, e Eu Sou Xakriabá, de Edgar Kanaykõ), ambas representantes da região Sudeste, e de Transparências do Lar, de Illana Bar, vencedora de prêmio especial do júri predominantemente francês, pela região Sul. Ana mora em Belém (PA) e a curadora Marcela, em Porto Velho (RO). Ambas são fotógrafas colaboradoras da Amazônia Real.
O projeto foi idealizado pela Iandé Fotografia, plataforma cultural que apoia, valoriza e promove a presença da fotografia brasileira na Europa, em parceria com a francesa Photo Doc, que tem por objetivo central dar evidência à fotografia documental. “A primeira participação da Iandé em Arles aconteceu em 2019, com o projeto What’s Going On in Brazil, uma tentativa de responder a grande questão dos europeus aos brasileiros: o que está acontecendo com o Brasil?”, conta Glaucia Nogueira, que coordenou o projeto pela Iandé. “Para 2021, queríamos continuar esse trabalho e ampliar a ideia de coletivo para a curadoria. Convidamos 15 curadores brasileiros, com olhares voltados para as cinco regiões do país, e cada um indicou dois fotógrafos.”
Glaucia elogia a série vencedora de Ana Mendes: “O trabalho é maduro, completo. Tem o engajamento com a comunidade e seu território e traz a denúncia da triste realidade política brasileira atual. A expropriação, o preconceito e o desmonte das estruturas governamentais de proteção são camadas presentes na abordagem da Pseudo Indígenas. E é claro que a questão dos povos autóctones do Brasil toca especialmente os franceses”.
Ana, de 36 anos, é fotógrafa e jornalista nômade que afirma ter nas questões territoriais seu principal foco de ação. Nascida circunstancialmente gaúcha, retornou aos 20 dias de idade a Porto Velho, onde morava e trabalhava sua mãe, a jornalista Cristina Ávila. Primeiro acompanhando o percurso de Cristina (inclusive em muitas aldeias indígenas) e depois por suas próprias pernas, Ana morou em Brasília (onde passou a adolescência), Foz do Iguaçu (PR), Cuiabá (MT), Porto Alegre (RS, onde se formou em ciências sociais), Rio de Janeiro e São Luís (MA). Diz ter ascendência familiar indígena submetida a forte processo de apagamento, mas não atribui a esse vínculo a temática abordada Pseudo Indígenas. “Meu trabalho é em primeira pessoa quando falo da questão territorial. Fotografo essencialmente pessoas em luta por terra e por território. A questão da territorialidade é um dos assuntos mais caros para mim na minha vida, que ainda não respondi nem resolvi”, interpreta. “No dia em que me dei conta disso fiquei em choque, paralisada.”
Os primeiros trabalhos
Retrato de Ana Mendes por Nay Jinknss
Ana construiu o projeto premiado a partir do trabalho documental junto a duas etnias indígenas específicas que vem fotografando ao longo dos anos, os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul e os Akroá-Gamella do Maranhão. Ela explica que o título Pseudo Indígenas está mais relacionado aos Akroá-Gamella. “Eles foram declarados extintos pelo Estado brasileiro e, em 2014, passaram a fazer autodeclaração pública de que são indígenas e não estão extintos. Na verdade, estavam com sua identidade censurada, calada, apagada por questões de violência simbólica. Como vários outros povos, estavam confundidos nesses nomes genéricos como caboclo, descendente de índio…”
Segundo Ana, os atos racistas contra os Akroá-Gamella se intensificaram a partir da autodeclaração. “Uma das falas era esta: ‘Eles não são índios, são pseudo-índios’. Essa tentativa simbólica de etnocídio desencadeou uma violência real, física, contra essa população”, explica. Como traço distintivo da série Pseudo Indígenas, Ana aplicou sobre as imagens expressões escritas de punho próprio, quase sempre extraídas de discursos de ódio racial. “São frases ditas por políticos, autoridades, pessoas públicas no geral”, conta.
Numa das fotografias mais fortes, crianças indígenas observam um corpo morto num caixão, que Ana emoldura com termos manuscritos como “índio”, “quilombola”, “gay”, “lésbica” e “não presta”. A imagem foi registrada em 2016, entre os Guarani-Kaiowá da cidade de Caarapó (MS), durante o velório do agente de saúde Clodiode Aquileu de Souza, assassinado num ataque realizado por produtores rurais locais. A confiança depositada pelo Conselho Indigenista Missionário atuante no local possibilitou sua presença no evento e o registro fotográfico. “Eles bloqueiam o acesso, porque se morre alguém a imprensa chega, mas não chega no dia a dia, nas reivindicações e nos outros tipos de violência”, denuncia.
A Amazônia negra
Imagem da série ‘Amazônia Negra’ (Foto: Marcela Bonfim)
O recorte racial que Ana confere às suas fotos não chegou por acaso aos Encontros de Arles. A curadora que selecionou o trabalho, Marcela Bonfim, é criadora do projeto Amazônia Negra (www.amazonianegra.com.br), dedicado a documentar a presença afro-brasileira na Amazônia. Glaucia Nogueira, do Iandé, explica como o grupo radicado na França chegou ao nome de Marcela para ser uma das curadoras representantes da região Norte: “Eu pessoalmente tinha visto uma entrevista muito forte e linda em que ela falava do seu processo, da ida para Rondônia, das várias negritudes. Sua busca pelo reconhecimento dessa Amazônia negra e o desejo de dar visibilidade a essa identidade brasileira ampla nos conquistaram totalmente. O nome dela foi unanimidade”.
Para sua representação em Arles, Marcela reuniu as vivências de indígenas e de afro-brasileiros com a chaga do racismo, respectivamente no Pseudo Indígenas de Ana e na série O Que Sustenta o Rio, assinada pelo fotógrafo Joelington Rios (mais conhecido como Rivers), nascido no quilombo de Jamarydos Pretos, em Turiaçu, no Maranhão, e hoje estabelecido no Rio de Janeiro. “Marcela era uma das poucas curadoras pretas, e selecionou dois trabalhos que falam sobre a questão do racismo”, comemora Ana Mendes.
Marcela explica a sustentação de seu eixo curatorial: “Os trabalhos de Ana e Rivers têm tudo a ver, a relação direta com o racismo, Ana deslocando o debate da pauta indígena para a questão racial e Rivers remontando o cartão postal mais visado do Rio, o Cristo Redentor, colocando o corpo negro ali e reconstruindo as relações de poder: quem sustenta o Rio de Janeiro? Não é só uma premiação, é uma sugestão de pauta”.
A sugestão de pauta se comunica intimamente com a história de Marcela, hoje com 38 anos. Paulista de Jaú, ela se formou em economia na PUC de São Paulo, em 2008, e viveu na pele a dificuldade da inserção no mercado de trabalho. “Passei 2009 todinho procurando emprego. Achei trabalho como callcenter, uma economista callcenter, olha que chique”, ironiza. Em 2010, “desparafusou” e foi trabalhar como economista em Porto Velho, numa empresa financeira de consignados. Na nova cidade, para sua surpresa, passou a ser abordada na rua com uma pergunta recorrente: “Você é barbadiana?”. A princípio ressabiada, inteirou-se da forte presença de uma diáspora afro-antilhana na região, iniciada no início do século XX por afrodescendentes das Antilhas inglesas que vinham da experiência da construção do Canal do Panamá e, no Norte brasileiro, empreenderam a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
“Esse corpo negro muito mais autônomo é uma imagem negra que não se via no Brasil. Não era uma imagem negra submissa, era insubmissa. Já chegaram aqui qualificados e muitos foram absorvidos pela Madeira-Mamoré. Em Porto Velho, começaram a se juntar num reduto chamado de Barbadian Town, aqui próximo das margens do Rio Madeira. A cidade chamava o lugar de Alto do Bode. Mas era Barbadian Town”, narra Marcela, enfatizando a imponência do nome.
Na comunidade dos indígenas
Imagem de Marcela Bomfim
Acostumada a uma existência de invisibilidade no Sudeste, ela sofreu o choque positivo da interação com os chamados “barbadianos”, descendentes daquela linhagem, vendo-se ser tratada com uma integrante das famílias Johnson, Shockness ou Maloney. “São famílias tradicionais negras. As pessoas daqui queriam ser barbadianas. Muitos falavam que eram barbadianos, para adquirir respeito, desde aquele período, embora sofressem, sim, muito racismo por parte das forças conservadoras da cidade. Mais tarde, encontrei o primeiro Johnson, Bubu Johnson. Comecei a conhecê-los pela cultura.”
Mais ou menos ao mesmo tempo em que conseguia um emprego sólido como economista na prefeitura de Porto Velho (“valorizaram aqui meu diploma da PUC”), Marcela aproximou-se da câmera fotográfica a partir do convívio com os Johnson, o que nortearia a próxima revolução em sua vida e carreira. “Esse processo de dignificação aconteceu aqui. Foi a partir da fotografia, inclusive, que comecei a ser reconhecida no governo como economista. Com a câmera fotográfica na mão, comecei a ser chamada de fotógrafa. Eu ria. Demorei para entender o que estava acontecendo.”
Marcela mora numa comunidade ribeirinha do Rio Madeira, em Rondônia, de onde afirma que não pretende mais sair. “É uma comunidade de indígenas, todos adormecidos”, diz, fazendo um paralelo entre essa condição “adormecida” e o estado como ela própria saiu de São Paulo e chegou à Amazônia. “Vai haver dignidade a partir do momento em que a história brasileira passar a ser de todos, e não só do pioneiro, do descobridor. Eu e a Amazônia estamos enegrescendo juntas. A gente fotografa o que a gente é”, afirma.
A revolução fotográfica
Marcela Bonfim durante apresentação no Sonora Festival (Foto @88milimeros.art3)
Os barbadianos foram a porta de entrada para que Marcela idealizasse o banco de dados Amazônia Negra, a partir de sua descoberta pessoal de que havia, sim, afro-brasileiros na região. Passou a fotografar personagens de lugares como o Vale do Guaporé – “não se pensa em quilombo em Rondônia, mas nós temos quilombos aqui”. A nova fase tem se desdobrado em realizações como o projeto Madeira de Dentro, Madeira de Fora, (www.madeiradedentro.com.br), sobre as muitas Amazônias reunidas dentro de um mesmo espaço, e a mostra recém-inaugurada As Afro-Antilhanas do Madeira– Pioneiras na Arte de Educar, em cartaz até 22 de agosto no Mercado Cultural de Porto Velho. Sobre sua comunidade ribeirinha, mas também sobre a Amazônia de modo geral, ela exclama: “Eu amo este lugar, é lindo, não saio daqui por nada”.
Enquanto Marcela Bonfim vive sua revolução fotográfica e existencial, Ana Mendes antevê novas transformações, precipitadas pelos Encontros de Arles: “Minha principal surpresa é que, com essa premiação, Pseudo Indígena adentra o mundo das artes. Estamos falando de um universo muito elitista, de uma realidade altamente classista, racista, branca. É óbvio, tenho total noção de qual lugar ocupo dentro de uma escala de privilégios, entre as indígenas fotógrafas, as mulheres, as mulheres negras, as pessoas negras. A temática com a qual trabalho, por ser muito política, tem uma entrada pela porta de trás no universo das artes”.
Ana enxerga Marcela e a si própria dentro dessa perspectiva: “Os curadores são sempre pessoas muito sudestinas, que estão ocupando o centro da produção cultural do Brasil, e em Arles não era diferente. Numericamente tínhamos muito mais homens, muito mais pessoas brancas, e eu fui indicada pela Marcela Bonfim. Reafirmo, é a nossa entrada pela porta de trás no universo das artes”. Sua conclusão é, por si, mais um passo na procura por território e identidade: “Estou muito feliz que entre os colegas que nos acompanharão na exposição em Paris está também Edgar, um indígena Xakriabá. É importante demais para mim, eu teria vergonha de não estar acompanhada por pessoas pretas e indígenas e outras que representassem o Brasil de uma maneira mais diversa”.
Assista ao doc curatorial com o ensaio de Pseudo Indígenas.
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