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Eu conhecia os homens mortos na Amazônia – e o suposto assassino

Os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira indicam uma nova escalada na batalha pela Amazônia e seus recursos.


Por Scott Wallace para Natural Geographic Brasil

Crédito: Marcelo Correia – Câmera Press, Redux


Em junho, os assassinatos brutais de um jornalista britânico e um indigenista na Amazônia foram muito comoventes para mim. Conheci os dois, conheço a comunidade e o trecho do rio onde ocorreram os assassinatos. E o mais inquietante de tudo: conheço o assassino confesso. O nome do suspeito foi indicado poucos dias após o desaparecimento da dupla em 5 de junho no Vale do Javari, uma imensa região selvagem da floresta equatorial, com rios sinuosos ao longo das fronteiras entre Brasil, Peru e Colômbia.


Dom Phillips, de 57 anos, havia se licenciado do jornal The Guardian para se dedicar a um livro sobre a Amazônia. Comparamos anotações em diversas ocasiões sobre nossas experiências na floresta equatorial, compartilhando dicas e contatos. Bruno Pereira, de 41 anos, foi um indigenista que dedicou sua vida à defesa das populações mais vulneráveis do Brasil. Era um guerreiro relutante – gentil e cortês, pai de três filhos, sendo duas crianças pequenas.


Pereira foi uma fonte valiosa para muitas matérias que escrevi à National Geographic. Algumas vezes, eu o chamava pelo primeiro nome. Na maioria das vezes, não o mencionava, para protegê-lo de chefes hostis que assumiram a Funai, órgão indigenista oficial do Brasil, após Jair Bolsonaro, populista de direita, assumir a presidência em 2019. Agente de campo experiente com amplo conhecimento na proteção de povos isolados, Pereira teve que tomar precauções adicionais para se proteger no governo Bolsonaro, que, desde o início, fez dos retrocessos na proteção ambiental e de terras indígenas peça central de seu governo.


O assassino confesso de Phillips e Pereira é Amarildo da Costa de Oliveira, pescador magro de 41 anos, mais conhecido pelo apelido de Pelado. Assim que ouvi seu nome no noticiário, tive certeza de que era a mesma pessoa que conheci há 20 anos.


Oliveira era um habilidoso homem das matas, capaz de golpear, com rara destreza e sem vacilar, um machado em um tronco sobre o qual estava, a poucos centímetros, seus pés descalços. Ele esteve entre os 10 pioneiros não indígenas que foram recrutados, juntamente com 20 batedores indígenas de três povos diferentes, para participar de uma expedição do governo brasileiro ao coração da extensa Terra Indígena do Vale do Javari em 2002. A missão era rastrear, mas não fazer contato com os flecheiros, povo misterioso e raramente visto.


A expedição foi liderada pelo renomado indigenista e explorador Sydney Possuelo, fundador e, à época, diretor do Departamento de Povos Indígenas Isolados da Funai. No fim da década de 1980, Possuelo foi pioneiro na extraordinária política brasileira do não contato para proteger povos isolados altamente vulneráveis do contato forçado com o mundo exterior. Em 1996, ele foi fundamental para a criação da reserva do Javari, de 85,5 mil km², um tesouro ecológico e cultural de mata nativa que abriga a maior concentração de povos isolados do mundo, comunidades indígenas que vivem sob isolamento extremo. Possuelo convidou a mim e ao fotógrafo Nicolas Reynard para documentar a expedição para a National Geographic.


Na época da criação da reserva, no fim da década de 1990, Possuelo supervisionou a expulsão de centenas de garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores não indígenas que exploravam a abundância de madeira, peixes e fauna silvestre da região. Alguns foram reassentados em uma série de comunidades em barracos de madeira construídos sobre palafitas e unidos por passarelas, logo abaixo do rio Itacuaí, nos limites da reserva. Entre os colonos de um desses vilarejos estava a família de Oliveira. Muitas das famílias deslocadas guardaram muito rancor pela criação da reserva do Javari, pelos indígenas e por seus aliados.


Como o afável desbravador da mata de quem me recordo, então com 21 anos, se transformou, em 2022, em um criminoso embrutecido que, segundo testemunhas, passou a adotar rotineiramente práticas proibidas de caça e pesca em grandes quantidades e se juntou a ataques armados a postos avançados do governo? Ele se tornou um soldado no acirramento da luta pela Amazônia e seus recursos (autoridades brasileiras alegam que outros dois suspeitos foram detidos por ligações com os assassinatos e estão sendo buscados mais cinco como possíveis cúmplices do crime).


Voltando a minhas anotações de 20 anos atrás, encontrei indícios de um lado mais sombrio de Oliveira. Na semana anterior ao início da expedição, certa noite, ele me contou à volta da fogueira, que ele e outros dois pescadores haviam sido assaltados por bandidos mascarados ao atravessar um furo – um dos muitos atalhos naturais entre as curvas dos rios sinuosos da região que surgem durante a estação das cheias. Os assaltantes roubaram seus motores de popa, espingardas e 200 kg de peixes.


Oliveira e seus amigos pagaram à polícia local para encontrar os culpados e, de acordo com as palavras do pescador, “dar um jeito neles”. Indaguei o que isso queria dizer e ele respondeu: “Matá-los”. Foi apenas a presença de outros policiais no momento da prisão que poupou a vida dos bandidos, prosseguiu ele. Foi justamente em um desses atalhos estreitos do rio Itacuaí que Oliveira e ao menos um outro cúmplice emboscaram e assassinaram Pereira e Phillips.


Impacto da falta de proteção do governo


Especialistas afirmam que, nos últimos anos, o Javari se tornou um local ainda mais perigoso, sobretudo para indígenas e ambientalistas. A maior razão, segundo eles, são a retórica e as políticas extremamente anti-indigenistas e antiambientais de Bolsonaro, o que vem incentivando uma intensificação no desmatamento e invasões de territórios indígenas por ruralistas, madeireiros, garimpeiros e aventureiros de todos os tipos, ao mesmo tempo em que é oferecido espaço para grupos do crime organizado agirem impunes em amplas extensões da Amazônia.


“Hoje, invasores de terras indígenas contam com a proteção do governo, incluindo Bolsonaro”, afirma Possuelo, atualmente aposentado e morador de Brasília. “Agem com mais ousadia e seu comportamento é mais agressivo porque se sentem protegidos pelo governo.”


Sob o governo Bolsonaro, os orçamentos da Funai e do Ibama, órgão de proteção ambiental, minguaram. Experientes funcionários da equipe de campo foram transferidos ou exonerados, substituídos por seguidores fiéis da política atual de governo. Logo após assumir o cargo em 2019, Marcelo Augusto Xavier da Silva, presidente da Funai indicado por Bolsonaro, exonerou 15 coordenadores de campo sem aviso. Como um mau presságio, tirou Pereira do comando do Departamento de Povos Isolados, onde havia servido por 14 meses.


Nos dias anteriores a seu afastamento, Pereira supervisionou uma operação coordenada, utilizando helicópteros, com o Ibama, a Polícia Federal e unidades do Exército, que destruíram dezenas de dragas de garimpo de ouro que operavam ilegalmente ao longo da margem leste do rio Javari. A operação rendeu a Pereira a inimizade de algumas pessoas poderosas e perigosas. Foi a última grande operação contra criminosos saqueadores de recursos da reserva do Javari.


As perguntas enviadas à direção da Funai sobre os assassinatos recentes, bem como a falta de iniciativa do órgão na proteção do Javari e outros territórios indígenas, permanecem sem resposta.


Após seu afastamento do cargo de comando, Pereira tirou uma licença não remunerada da Funai e retornou ao Javari. Na década de 2010, havia passado muitos anos na região, onde adquiriu um profundo conhecimento sobre povos isolados e a melhor forma de protegê-los. Com a deterioração da capacidade e disposição da Funai em defender a reserva, ele se ofereceu para organizar e treinar uma força de vigilância territorial totalmente indígena para impedir incursões. Ele ensinou aos membros da patrulha como organizar a logística e os treinou no uso de fotos e vídeos georreferenciados, comunicações por rádio e tecnologia de drones. Pereira convidou Phillips ao Javari para documentar seu trabalho e conhecer membros da patrulha de vigilância. Em 3 de junho, enquanto estavam com essa equipe, entraram em confronto com Oliveira e outros dois pescadores.


Segundo testemunhas da equipe de vigilância indígena, os pescadores ameaçaram e apontaram espingardas para Pereira e Phillips, que registraram o confronto em vídeo. A essas imagens somaram-se inúmeras provas reunidas pelas patrulhas indígenas de crimes ambientais cometidos dentro da reserva. Pereira planejava entregá-las à Polícia Federal no dia em que a dupla desapareceu.


“Claro, é perigoso. Nossas equipes estão vulneráveis, enfrentando os invasores”, admitiu Paulo Marubo, coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), quando lhe telefonei recentemente em seu escritório em Atalaia do Norte, no rio Javari. “É um risco, mas se nada for feito, se não os enfrentarmos, quem fará isso por nós?”


Há três anos, Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai, foi assassinado em plena luz do dia por um grupo de atiradores em motos na cidade vizinha de Tabatinga, localizada no tronco principal do rio Amazonas. Santos era conhecido por seus numerosos desentendimentos com pescadores e caçadores de animais silvestres no Javari. Pouco antes de sua morte, ele integrou uma equipe que flagrou caçadores dentro da reserva com 300 tartarugas e 40 mil ovos desses animais. Seu assassinato nunca foi esclarecido.


Com os últimos assassinatos, lideranças indígenas percebem uma tendência preocupante na luta pela preservação de suas terras e recursos. “O nível de violência contra Maxciel e a forma como mataram Bruno e Dom Phillips demonstra o ódio profundo por ambientalistas e indígenas”, lamentou Beto Marubo, representante nacional da Univaja, que recentemente se mudou de Atalaia para Brasília, diante das repetidas ameaças de morte. “Acreditamos que exista uma forte ligação entre o ocorrido com Maxciel e com Bruno e as invasões da Terra Indígena do Vale do Javari.”


Suspeita de ligações com o crime organizado


Os invasores, cada vez mais ousados, não são mais pessoas isoladas com uma rede ou uma espingarda em busca de seu sustento. Membros das patrulhas indígenas afirmam que os grupos de caça ilegal se parecem cada vez mais com empreendimentos altamente capitalizados, apoiados por uma rede sombria de investidores externos com suspeitas de ligações com o tráfico de drogas.


Seus barcos de pesca possuem motores de alta potência e transportam grandes quantidades de combustível, redes sofisticadas, gelo e centenas de quilos de sal para preservar a carne de animais silvestres e o pirarucu, criticamente ameaçado de extinção, um dos maiores peixes de água doce do mundo. Em uma rara operação policial, em março, policiais interceptaram pescadores que deixavam a reserva com dezenas de tartarugas ameaçadas de extinção, 650 kg de carne salgada de animais silvestres e quase 900 kg de pirarucu salgado.


Os evidentes desembolsos em dinheiro criam a capacidade e a necessidade de pescadores como Oliveira se aprofundarem no território do Javari, permanecerem na região por mais tempo e retornarem com cargas pesadas para saldar suas dívidas. Relatos não confirmados indicam que Oliveira devia a um financiador peruano apelidado de “Colômbia” mais de 15 mil dólares porque uma carga de seu contrabando havia sido interceptada por patrulhas indígenas.


À medida que os invasores avançam no interior do Javari, líderes indígenas e seus aliados temem a crescente probabilidade de um desastre com os indígenas isolados que vagam pela floresta. “Definitivamente estão colocando em risco os povos isolados”, afirma Orlando Possuelo, filho de Sydney, que vive em Atalaia do Norte e trabalhou ao lado de Pereira no aconselhamento das patrulhas indígenas nos últimos dois anos.


Caçadores ilegais caçam os animais dos quais depende a subsistência dos povos isolados. E povos não contatados permanecem altamente vulneráveis a doenças contagiosas, contra as quais têm pouca ou nenhuma defesa imunológica. Por fim, talvez o risco mais imediato seja o perigo iminente de violência. “Esses pescadores não hesitam em atirar”, lamenta Orlando. “Se estão dispostos a matar fora da reserva, não há dúvida de que as vidas dos isolados estão em risco.”


Um grupo indígena isolado não teria como interagir pacificamente com invasores de seu território. Sua primeira reação provável seria o ataque, o que poderia provocar um banho de sangue quando os invasores respondessem a lanças ou flechas com disparos letais, observa Paulo Marubo. “É óbvio o resultado do combate entre aqueles que portam armas de fogo e aqueles que não dispõem delas.”


A esperança de evitar essa possibilidade alarmante foi o que motivou Pereira a arriscar a vida. “Minha maior preocupação é com o avanço de forasteiros – sejam eles de projetos autorizados pelo governo ou de agentes ilegais como madeireiros, garimpeiros e grileiros – nos territórios dos povos isolados”, declarou Pereira por telefone, em 2019, depois de ser destituído do departamento de povos isolados. “Ao mesmo tempo, a Funai e o departamento de proteção de povos isolados estão paralisados. É uma combinação muito perigosa.”


As lideranças indígenas do Javari afirmam que não serão intimidadas pelos assassinatos de Pereira e Phillips, e que as patrulhas de vigilância prosseguirão.


“A lembrança deles reforça nosso espírito de luta, de defesa do território”, informa Marubo. “Antes o Bruno lutava por nós, agora nós lutaremos por ele.”


Apesar das declarações anteriores de que o crime parecia resultar de uma disputa pessoal, a polícia agora afirma que está em investigação um possível elo entre os assassinatos e uma rede maior de crime organizado.

Scott Wallace é professor associado de jornalismo da Universidade de Connecticut e autor de Além da conquista – Sidney Possuelo e a luta para salvar os últimos povos isolados da Amazônia.

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