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Literatura indígena brasileira contemporânea: autoria, autonomia, ativismo

Por Julie Dorrico, Fernando Danner, Leno Francisco Danner


De fato, minha face nunca me deixou estar imperceptível. (Jaider Esbell)


Este trabalho representa uma continuidade relativamente ao texto Literatura Indígena Brasileira Contemporânea: Criação, Crítica e Recepção, publicado no ano de 2018, no qual procuramos abordar a questão da produção estético-literária indígena desde uma dupla perspectiva que, de todo modo, para nós, está em permanente interação: a visibilização dos/as próprios/as escritores/as indígenas, a publicização, a escuta e o estudo de suas palavras; e a interpretação e a utilização acadêmicas dos textos e, obviamente, da própria perspectiva epistêmica, política, estética, ontológica inclusive, desses/as escritores/as enquanto intelectuais que falam-agem – voz-práxis – desde sua condição como indígenas, uma vez que, como podemos perceber neste texto por meio de suas palavras, é a partir dessa condição como indígena que a literatura nativa (Olívio Jekupé) construída

pelos/as pensadores/as originários/as (Aline Pachamama) ganha seu sentido e adquire sua dinâmica. A literatura é indígena não apenas por uma questão de modismo, embora o modismo já pudesse ser suficiente para legitimá-la – afinal, não existiria academia em particular ou sociedade civil de um modo geral se não houvesse diversidade epistêmica, política e estética (os muitos “ismos”, as muitas “logias”, os muitos partidos etc.). A literatura é indígena, contudo, por algo muito mais importante e que encontra seu sentido exatamente no próprio processo de construção do sistema-mundo euronorcêntrico em que a tríade colonialismo-racismo-

menoridade constitui o núcleo basilar de funcionamento.


Com efeito, se quisermos entender a emergência, o desenvolvimento e a consolidação pública, política e cultural do pensamento indígena brasileiro, nisso que representou, no dizer de Ailton Krenak, a segunda descoberta do Brasil, temos de retomar insistentemente o fenômeno de nossa modernização conservadora e

periférica, produto da correlação de eurocentrismo, colonialismo e racismo, cuja ação central consiste exatamente na produção de menoridade político-cultural.


O/a índio/a, essa noção simbólico-semântica que “conhecemos”, essa imagem folclórica que compartilhamos no dia a dia e que está no mais fundo de nossa psique coletivo-individual, foi construído pela tríade eurocentrismo-colonialismo-racismo, foi nomeado desde o início pelo invasor que, ao utilizar tal tríade, inverteu a lógica da colonização: de invasão, roubo, assassinato, estupro, ela passou a se chamar desbravamento, construção civilizacional, humanismo (mesmo que ao preço das guerras justas de ontem e hoje); e, no mesmo diapasão, o colonizador, mais uma vez pela assunção daquela tríade, transformou-se “essencialmente”, tornando-se desbravador, agente da civilização e do progresso, profundo humanista, ele que é, utilizando categorias jurídicas tão caras aos “liberais na economia e conservadores na cultura”, em particular quando se trata da justificação do sagrado direito à propriedade (deles), apenas um ladrão, assassino, terrorista e estuprador.


O/a índio/a, portanto, somente existe por causa da correlação de eurocentrismo, colonialismo e racismo, e existe enquanto menoridade, isto é, como sujeito não-público, que, por isso mesmo, precisa ser silenciado, invisibilizado e privatizado, cujo único espaço é o mato, o mais profundo dele; ademais, como povo-sujeito pré-civilizacional, deve ser tutelado, outros – os brancos (outro conceito tornado normativo e naturalizado com a tríade eurocentrismo-colonialismo-racismo) devem representá-lo, falar por ele, orientá-lo. É desse modo que podemos perceber, em todos/as os/as escritores/as indígenas presentes nesta coletânea, uma politização de sua voz e uma vinculação de sua práxis em torno à condição e à causa indígenas e, nesse sentido, como crítica direta, pungente, carnal e vinculada contra a tríade eurocentrismo-colonialismo-racismo. Desde sua condição étnico-antropológica, desde suas bases paradigmáticas, suas ontologias locais-universais, eles utilizam-se de diferentes ferramentas epistemológicas e as readéquam ao propósito de uma literatura militante (crítica social, reconhecimento cultural, luta política, perspectiva educacional, subversão epistemológica etc.) em que o relato autobiográfico, testemunhal, mnemônico e experiencial utiliza-se de sua própria condição, de seu próprio corpo, de sua própria origem, da ancestralidade, dos massacres e preconceitos vividos e sofridos como objeto temático e aguilhão crítico no qual criatividade, catarse e militância adquirem toda a pungência, dramaticidade e politicidade que somente um/a intelectual de minorias pode fazer em sua plena efetividade.


Leia-se Elie Wiesel e Eliane Potigura, leia-se Hannah Arendt e Ailton Krenak, leia-se Primo Levi e Kaká Werá, leia-se Franz Kafka e Olívio Jekupé, leia-se Anne Frank e Werá Jeguaka Mirim – as experiências autobiográficas de menoridade, de violência simbólico-material vivida e sofrida como minorias, a riqueza epistêmico-normativa dessas singularidades estão no mesmo patamar, assim como a genialidade autoral; leia-se Hans-Georg Gadamer e Davi Kopenawa e veremos ontologias macroestruturais de diálogo, crítica e intervenção na modernidade com a mesma grandiosidade e importância. Por que fazemos essa comparação genérica? Porque a produção estética, literária, filosófica indígena – assim como a descolonização africana e as filosofias negras, a teoria queer e os feminismos – representa a efetiva potência crítica de um processo de modernização que alcançou um estágio de autodestruição permanente e, como nos parece (e aos/ às intelectuais indígenas brasileiros/as), imparável, irrefreável. Porque o ativismo das minorias político-culturais e suas múltiplas bandeiras de reconhecimento, em um tempo de crescimento não apenas de lógicas sistêmicas, não-políticas e não-normativas ligadas ao mercado e à guerra (o mercado como guerra), mas também do casamento de mercado, totalitarismo e conservadorismo, representam um dos baluartes mais básicos para a reafirmação de um universalismo em que direitos humanos, pluralismo, justiça e igualdade mínima ainda podem ser

justificados, defendidos e implantados.


A crítica à modernização, portanto, encontra nos/as intelectuais de minorias, encontra no ativismo dos grupos marginalizados, tradicionalmente negados, negativados, violentados, seu verdadeiro núcleo epistemológico-político. É nesse sentido que a consolidação pública, política e cultural das minorias – no nosso caso, do pensamento indígena, da literatura indígena – se constitui em um momento fundamental para a tematização de nossa modernização conservadora e periférica e, nela, do conservadorismo político-cultural que, em nome de uma visão essencialista e naturalizada de mundo, de cunho racista, homofóbico, machista e autoritário, ao mesmo tempo em que individualista, ataca nossos grupos minoritários, em particular os povos indígenas e os movimentos LGBTQ+ como seus alvos primordiais, embora sem esquecer-se das tradicionais misoginia e negrofobia.


Por isso, essa coletânea objetiva correlacionar autoria, autonomia e ativismo, no sentido de que o enfrentamento da menoridade exige exatamente uma perspectiva autoral autônoma e militante dos e pelos sujeitos marginalizados, a partir de sua condição e de suas experiências como singularidade. Como dissemos acima, se a menoridade é justificada pela ideia de que o/a outro/a é um sujeito infantilizado, degenerado e até animalesco, um imbecil, tendo de ser afastado da esfera pública e escondido no mato, na cozinha, no armário ou na senzala, devendo, portanto, ficar na esfera privada, invisibilizado e silenciado, de modo que seu senhor falaria por ele/a, o enfrentamento dessa perspectiva colonial, racista e autoritária exige a politização, que só vem com a publicização da própria voz-práxis, que só se efetiva como esfera pública, como militância direta, como um pensamento-práxis que desnaturaliza e, então, politiza intersubjetivamente as condições, os sujeitos, as histórias, os valores e as práticas, assim como os símbolos, construídos em termos de colonização e por meio do racismo. E, ao fazer isso, traz para o centro da vida democrática novas ontologias, epistemologias, éticas, estéticas e utopias.


Acreditamos que o pensamento indígena pode ser a base para uma nova perspectiva

teórico-prática de crítica e de reconstrução da modernização.


Os organizadores

Porto Velho (RO), Fevereiro de 2020



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